terça-feira, 28 de julho de 2009

BIOGRAFIA DE AMORES - texto I



Eu o encontrei sem esperar, quando olhei pelo buraco da fechadura de uma capela em São Paulo. A capela estava fechada e acesa. Tive de decidir se entrava ou não. Dois minutos de espera para atravessar o caminho dele como uma flecha. Eu vestia saia preta com fendas atrás e blusa colada no corpo. Salto alto, olhar altivo e a falsa ilusão de que sou dona do meu destino. Perdoem-me a falta de modéstia, não sei mentir em outro tom. Desde que a porta da capela se abriu, ficou no ar o risco de amor sem limites. Aquele misterioso respirar de fogo que acontece poucas vezes na vida. O véu que cobria meus cabelos colou em minha garganta enquanto a tarde baixava sobre os chuviscos eloqüentes da cidade. Farejei o clima romântico no ar. Um milagre iria acontecer. Pude contemplar os olhos dele a se incendiarem enquanto lia o meu silêncio. Lia e relia. O que vou relatar são imagens, a contundência é por vossa conta. Não consegui ajoelhar-me quando o sorriso dele floresceu sobre o nada. Não tinha muita certeza das coisas, não sabia se podia confiar naquele homem alto com ângulos fortes no rosto. Penso que nunca temos certezas, o que também não faz grande diferença. Certo é que não lutei contra o ritmo natural das coisas. Aliás, nunca crio resistência quando a vida sai de seu lugar comum. E quando a mentira se aproxima da verdade, não ouso classificá-las. Estou longe de ser essencialista.
As sílabas se reproduziram em centenas antes de nos olharmos face a face. Vi as palavras viajando para se organizarem em enormes poemas. Metáforas de sonhos assinalando versos. Dava para escutar o tempo como um relógio à distância. No vitral, cores desenhadas em corações aflitos. Quem são essas almas que acenam clandestinamente para a minha felicidade? Felicidade tem nome e cor. Meu nome eu esqueci. Uma cruz, um sino, uma flor. As nuvens no teto seguindo a mão de Deus. Um arcanjo voando no balanço das lâmpadas. Ajoelhamos ao mesmo tempo numa leve coreografia. Abraçamo-nos enquanto a chuva caía, o céu caía e um novo amor brotava das profundezas divinas. Vestem-se os séculos de cetim que nosso poema nasce no palco de Deus. Abri as cortinas de meus aposentos mais íntimos para ele entrar. Por que não? O amor será sempre um acaso, será sempre um engano que se escolhe e do qual, nada se sabe. O amor romântico que salvou a humanidade também a oprime. E eu me sinto humanidade debaixo dessa pele fina quase envelhecida.
Preciso confessar meus pecados. Damas que montam a cavalo perdem cedo a virgindade. Fui amazonas. Cruzei o mundo sobre uma cela. Mulher estrangeira e peregrina nesta terra. Mas, solenemente declaro que sou filha de Deus e tenho os seios redondos como os da virgem que amamenta o menino. Seria sacrilégio essa comparação? Sou a pecadora que Cristo conforta e salva todos os dias com o sangue que emana de seu flanco.
Ele não apenas acreditou, também usou o dedo indicador para tocar o bico do meu seio esquerdo e com a outra mão segurou o seio direito, redondo e imaculado.
Ouvíamos ao longe um canto gregoriano, o mesmo que ouço nos momentos de perdão. A música, o cenário e a voz dele tornavam o momento sagrado. Mas senti vontade de ouvir Monteverdi, o lamento de Ariadne, ária profana de um amor desgraçado, mas entoado dessa vez com outros versos, de modo santo para expressar meu estado puro. Um canto em soprano, com acordes harmônicos refinados. Um canto mitificado de essência inigualável para delinear nossa inusitada aproximação. Saímos juntos da capela à procura de nossa música, de nossa história, de nosso amor.
Lucilene Machado

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