terça-feira, 11 de agosto de 2009

BIOGRAFIA DE AMORES - texto II

Nos encontramos num bar em Paris. Chovia fino nos telhados vermelhos dos prédios antigos, que deviam estar há muitos metros da nossa cabeça. O silêncio dessa distância devorava as palavras antes que elas fossem ditas. Ele lia um jornal. Eu lia as palavras que foram escritas nas paredes, muitos anos antes d’eu nascer. Palavras voláteis, alheias, despencando no tempo de uma saudade. O bar ficara grande, como se houvesse apenas nós dois. Sem violinos, sem cítaras, sem um cantor a debulhar palavras amenas. No ar, somente sílabas soltas em língua que eu não conheço. Tive vontade de me aproximar. Entabular uma prosa de aromas e paladares, falar das pequenas cidades de nomes desconhecidos e descobrir qualquer coisa em comum entre os nossos mundos. Talvez ele fosse um artista. Talvez soubesse desenhar e fizesse alguns desenhos em papel de embrulho e me presenteasse dizendo algo inteligente, excessivamente inesperado, como sonham as mulheres que ousaram explorar Paris, sozinhas. Possivelmente eu também ousaria inventar uma caligrafia redonda e escreveria algo romântico como espera um homem que lê jornal num bar parisiense.
Mas ele seguia indiferente a tudo, inclusive a meus pensamentos furtivos. Sequer percebeu que os homens que lêem despertam a minha cobiça. Mais que isso, despertam pensamentos corrosivos e persistentes. Olhei firmemente, ele abaixou o jornal e seguiu como se estivesse lendo, mas a posição em que se colocou resvalava em uma dúvida. O corpo sempre fala mais alto. O corpo grita. Seus cabelos fartos e cachecol jogado aos ombros revelavam um homem inteligente. Homens inteligentes têm uma elegância despojada. Algo quase natural, quase inato. E essa distância entre o ser e o não-ser é que os tornam irresistíveis. Daí que não desgrudei os olhos dele e passei a estudar uma estratégia de aproximação. Mas não tenho proficiência nisso. É uma linguagem que manipulo muito mal.
Aproximei-me a passos lentos para que ele tivesse tempo hábil de se preparar. Correr, se quisesse, virar de costas, abaixar as vistas. Mas ele manteve o olhar fixo em qualquer ponto detrás de mim. O que lhe proporcionava uma visão ampla, que ia se afunilando em meu rosto, à medida que eu me acercava. O silêncio me constrangeu, mas não havia tempo para desistir. Como uma mulher tímida, feito eu, se arrisca em investidas tão ousadas? Risquei o muro do constrangimento com um “conhece um café onde se pode ouvir músicas francesas?” Ele me estendeu um olhar discretamente desconfiado e perguntou: “veio da Ucrânia?”
Minha língua poderia até ser confundida com o espanhol, minhas atitudes cheias de gestos poderiam lembrar o italiano, mas o russo? Decepcionada, só consegui negar com a cabeça e engolir meu sotaque brasileiro, ressuscitado num passado verde entre campos e vacarias fortemente vincados em minha memória.
Não habituada a ser tratada com indiferença, espreitei meu olhar para fora do bar, e marchei em seguida. Mas não houve tempo para que eu me decidisse entrar em qualquer outro local, nem mesmo para me esconder da chuva fria, pois senti uma mão masculina me tocar. Aturdida, encenei também meu gesto de indiferença. Segui muda por uma alameda que eu já conhecia de filmes e cartões postais, mas a paisagem não mais importava. Importava que ele seguia ao meu lado. Espreitávamos para fora como quem olha para dentro. Eu tinha medo de pronunciar qualquer palavra e ele não entender. Medo de alterar a cena, de afastar aquela sintonia surda que estava nos encaminhando para uma catarse parisiense.
Entramos em uma barca que descia o rio Sena. Parecia armação de filme francês. Uma música, um lugar, duas pessoas e nenhum diálogo. Sentamos em um canto discreto. O lustre antigo movimentava-se sobre a mesa. Não sabia o que dizer, o que sentir. Minha cabeça era uma fábrica de idéias inconclusas. Mas no exato momento em que eu ia pronunciar a primeira palavra, ele precipitou a mão vagarosamente sobre a mesa como se estivesse procurando um lugar no mapa do meu corpo e já soubesse que a fronteira era a ponta dos dedos. Ficamos os dois olhando para o que ele ia fazendo. Meus dedos foram abrindo-se ao toque dos dele e vagarosamente se cruzando, amalgamando-se como velhos conhecidos. Nossas mãos brancas incorporavam nossa nudez antecipada. Nossas respirações se aceleravam, inspirações longas que chegavam a embaraçar. Parece que ele sabia do meu pesadelo obsessivo por mãos de homem. Principalmente as bem feitas, marcadas por veias nervosas e azuis. Percebi que as pessoas presentes nos observavam. Perfazíamos uma imagem que chamava a atenção. Uma imagem tão bonita que merecia ser eternizada nas antigas porcelanas francesas.
Depois de todos os beijos, ele perguntou meu nome, minha nacionalidade, meus sonhos...e segue perguntando se não quero conhecer a Ucrânia.


Lucilene Machado

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