sexta-feira, 9 de outubro de 2009

BIOGRAFIA DE AMORES - texto III

BIOGRAFIA DE AMORES - texto III
Era uma noite sem fundo equilibrando-se entre a névoa da insanidade e o veneno da poesia. Saí em direção de outro destino. Mas é difícil apontar para algum norte quando não se sabe onde ele fica. Na dúvida optei por um pouso provisório, quase clandestino, desses em que se oferecem meia pensão, meia diária, meias mentiras... A vida é mais barata e mais leve quando se vive pela metade. Entrei com uma parte de mim. A mais perigosa de todas. Cabelos louros, pele dourada, dentes brilhantes e lábios molhados de gloss. Posto isso, subi uma velha escada de madeira que dava para o pequeno hall cuja porta se abria para uma sala com jornais, televisores, computadores e um espaço para fumar na sacada. Tudo iluminado por uma luz que não perdoa nada, nem a rachadura duma parede, nem a varanda mal varrida, nem as rugas nas caras das mulheres, nem o sol apodrecendo numa réplica de Monet.
Apesar do lugar pouco atraente, havia pessoas. E lugares só funcionam quando existem pessoas. Lugares sem pessoas são ocos e insossos. Se eu tiver que escolher entre lugares e pessoas, fico com as pessoas, mesmo com as que estão vazias. Os gestos moldados no silêncio não têm sentido. Mas sei tão pouco sobre pessoas. O ser humano e suas grandes verdades. Não tenho a intenção de falar de verdades, prefiro as pequenas mentiras, mas não aprendi discerni-las. O amor é o desamor que açoita a pele e penetra os poros dilatados. Verdade para uns, mentira para outros.
A essa hora, o amor passeia lentamente pelos quartos vazios da pousada. Ele que fique só, olhando-se no espelho, sentindo-se esgotado, velho e feio. Ele que morra de abstinência, inanição e desprezo. Maldade? Na morte não há compaixão. Na morte só há saudade. As mãos, o olhar, os beijos. Depois um gesto recolhido, silencioso. Um pedido de “por favor, me esqueça”, um abalo sísmico na geografia do corpo.
O amor passou por mim, todo mundo percebeu. O moço que fuma na sacada me estende um olhar cinzento e complacente. O outro, da mesa quatro, bebe no copo sua tristeza gelada e parece conhecer a minha dor. O amor também passou por eles, não é difícil reconhecer suas marcas, deixa erupções na pele, cicatrizes visíveis e não há nada de extraordinário nisso. O amor é assim, meio ridículo, meio insano. Olho para os lados e vejo pessoas esvaziadas, sem o menor desejo de serem assediadas. Às vezes, sinto medo delas. Às vezes, sinto medo de mim. Sei que pareço uma criança assustada, mas hoje não estou disposta a ser recatada.
Há cinco metros de distância entre mim e o balcão. Apoiado nele, de pé, e quase de costas, um homem de suéter negro. Sozinho, como eu, como a maioria. Cabelos fartos e cinzentos, além de um porte másculo e elegante que o diferencia dos demais. Fiquei impressionada apenas com o que pude ver. Com ele eu seria capaz de cama, mesa e banho. Mas é tarde para pensar nisso. Sou mulher adulta, ciente de que se pode viver sem amor, que se pode respirar livremente, piscar e engolir as palavras, sem gemidos e sem lágrimas. Não preciso passar horas embaixo do chuveiro tentando lavar o que está por dentro. Nós mulheres temos uma capacidade inata de nos auto-enganar e justificar nossos pecados. Claro que ás vezes fica um culpa roendo os ossos, mas para que pensar nisso agora? Fixei meu olhar no homem de negro. As pessoas percebem, mesmo de costas, um olhar fixo. E viram-se vagarosamente para procurar o foco. Encontram-no, acionam o zoom para captar os detalhes e seguem o cheiro do desejo no ar.
O homem veio até a mim como se estivesse atraído por um imã. Tinha olhos festivos e traços angulosos. Havia qualquer coisa de exótico no conjunto do rosto que eu não soube captar. Qualquer coisa de mistério que eu queria e não queria decobrir. Ele ficou meio sem jeito, o que me deixou tímida (sempre fico tímida nas horas impróprias). Disse que eu era bonita e que gostava do meu jeito discreto. Senti que corei. A timidez é vizinha da insensatez. “Por favor, que horas são?” perguntei antes que ficássemos íntimos. “Cada instante é imortal”, respondeu-me, demonstrando estar cheio de palavras envolventes para dizer e que, apesar das efemeridades, era possível usufruir um pouco de romantismo. Engulo os pensamentos num gesto de coragem. Matar os pensamentos me deixa alerta como um cão farejador. Ele percebe que aquele meu estado pode ser um pedido de socorro. De “por favor não diga nada, eu não me sinto preparada”.Intui que eu estou desnorteada e sem elementos para gerenciar o silêncio gravíssimo nos rondando. Eu quieta e inquieta. Eu viva e com a alma em reboliços. Eu com olhar esgazeado de fêmea que só queria curar a dor de uma rejeição seguindo os pontos cardeais e estava prestes a cair na própria armadilha.
Melhor ir dormir antes do constrangimento das palavras. Claro, não preciso viver esses frêmitos de ansiedade. Posso pagar a noite num quarto amarelado de pé-direito alto, com luz de detector de incêndio no teto. Posso passar oito horas olhando a luz vermelha piscar sem maldizer a solidão. Melhor não me deixar enlaçar no fio frágil da sedução que mal nos ligará ao improvável dia de amanhã.
O homem bonito acende um cigarro para me dizer que a vida é breve. Aponto para a ala dos fumantes. Ele apaga vagarosamente o fogo com a ponta dos dedos. Um gesto que me excita e me apavora. A fumaça se mistura ao meu rude pensamento: ele tem sensibilidades e fraquezas, meu Deus! Talvez tenha a mesma dor que eu. Aproveito o momento turvo para olhar o relógio. Que tempo mal situado, enroscado na lucidez das circunstâncias. Sei que vou lamentar a oportunidade que me escapa pelos vãos dos dedos. Os mesmos dedos capazes de apagar um cigarro e promover prazeres da carne. Prazeres que eu rejeito com um olhar. Sinto um nó na garganta, as palavras não pronunciadas dormirão em meu coração discreto, ou em nossos corações discretos. Como essa vida é complexa, meu Deus.

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