segunda-feira, 5 de outubro de 2009

MEMÓRIA


MEMÓRIA


Você sempre aparecia nas férias. Vinha com aquelas idéias modernas da cidade grande. Falava de metrô, aeroporto, elevadores... e mostrava fotos de uma vista noturna capitada a partir de um viaduto. Que palavra bonita “viaduto”! Uma ponte sem rio por baixo - você me explicava com a paciência das crianças. E eu achava tão bonita a boca que você fazia pra dizer “metrópole”. Ah, aquela sua maneira de contar histórias urbanas com palavras urbanas. Eu bem que tentava imitar, fazia beicinho e tudo, mas o que eu sabia mesmo era contar histórias de assombrações.
Adorava ver os seus olhos faiscando de medo. A noite é perigosa e traiçoeira – eu dizia, sem saber bem o que estava dizendo. E lhe ensinava a fugir dos bichos e a desbravar o mato cerrado. Ora, eu até já tinha visto um saci! E você acreditava. Acho que fui eu que lhe ensinei a mentir e você aprendeu muito bem, desenvolvendo grandes habilidades na área. Constatei isso nas últimas entrevistas que você deu à TV. Olhei bem nos seus olhos e vi que eles ainda conservam os sinais do medo. Tive a sensação de que você ainda continua a fugir dos bichos. Talvez de outros mais graves, mais ferozes que lhe habitam por dentro e não há faca ou caco de vidro que os façam recuar.
Senti pena. Mas não posso negar que tive certo orgulho quando o vi montado num cavalo. Fui eu que o ensinei a montar. Eu era valente e montava cavalo em pêlo. Você quis tentar, lembra-se? Caiu e quebrou o braço. Que sorte quebrar o braço! Eu nunca consegui tal façanha. Como eu invejava os privilegiados capazes de exibir uma parte de gesso no corpo. E minha mãe cuidou de você. Muito melhor do que cuidava de mim. E nas refeições o servia antes de mim, lhe paparicava e dizia que você era inteligente, sabia muito mais do que nós. Ora! Sempre discordei, eu sabia coisas que você não sabia. Eu sabia descascar cana nos dentes, manejar estilingues, armar arapucas, capturar vaga-lumes... ah, eu sabia preparar emboscadas, atravessar correndo os arames farpados, subir nas copas das árvores e ficar olhando lá de cima... Você tinha medo até de galo de crista empinada! Tinha horror a minha coleção de joaninhas e corria quando eu o ameaçava com uma porção de minhocas nas mãos.
Mas o tempo passou. E na adolescência, eu é que fui passar férias na cidade grande. Rio de Janeiro. Você me levou ao metrô, mostrou-me as pontes e viadutos, mostrou-me túneis, ruas se abrindo, caminhos e descaminhos que eu não sabia que existiam. E quando dei por mim, já estava perdida. Perdidamente apaixonada. Tão inexperiente eu era! Não consegui decifrar aquele misto de dor, prazer, vontade de ficar, vontade de partir, vontade de querer de não querer.... medo!
Você me levou ao cinema para ver “Os Embalos de Sábado à Noite” e disse que eu tinha cheiro de terra molhada. Não sabia se gostava. Não dava pra raciocinar. Todo o corpo estava contraído por aquela espécie de sentimento que nos separa da realidade. Nem me lembro como foi o primeiro beijo, mas lembro-me do segundo, do terceiro... e da saudade que vivi depois.
Por algum tempo trocamos correspondência, até que você foi embora para a América e então, perdemos o contato.
Custei a acreditar quando o vi na TV, cheio de dedos, proferindo palavras persuasivas com uma oratória semelhante a dos políticos. E não é que você era um político?! Tempos depois você assumia um cargo importante no país. E concedeu uma série de entrevistas. Não pude acompanhar a todas, mas não deixei de ver algumas. Em especial aquela em que você mostrou a sua família e a fazenda. Foi aí que eu vi o seu cavalo. E você cheio de pompas dizendo que sabia montar desde os oito anos e que fora um menino valente, acostumado a montar cavalo em pêlo.
Eu ri muito. Você recortando um pedaço da minha vida e se fazendo dono dele. Mas pode ficar com esse pedaço. É seu, tá dado. Pode fazer de conta que eu não existi. Que me importa? A sua memória é uma mistura do que não foi e do que você gostaria que tivesse sido. Pode ficar com toda a história que era nossa. Que direitos eu teria sobre ela? Para você eu sempre serei a filha do administrador de fazenda do seu pai, que, para todos os efeitos, nunca fez parte da sua vida. Que diferença faz? Continuo a saber das coisas que você não sabe e se eu pudesse lhe dizer algo, assim bem de perto, diria pra você montar, realmente, um cavalo em pêlo, talvez fosse a coisa mais autêntica a fazer.

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