terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

BIOGRAFIA DE AMORES (texto IX)

Texto IX

          Desculpe JB, se abro o coração em praça pública. Quando me apaixono, o nível de burrice se eleva enormemente e a inteligência se fragmenta em milhares de partículas. Claro que eu nunca fui dotada de uma inteligência privilegiada, meu pensamento nunca ultrapassou as teorias já existentes, tampouco eu soube fazer uso delas nas horas devidas. Escrevo porque sou refém das palavras, preciso delas para unir os destroços de inteligência, fragmentados em letras díspares, que extrapolam as margens do meu entendimento. Escrevo para saber o que penso e o que sinto. Escrevo sobre a metade das coisas, a metade que me pertence, a metade que entendo. A outra metade talvez seja a que me explique, mas não forço a vida. Sou condescendente com o improvável. Difícil compreender? Para os carentes de fantasia esse relato é inútil. O que vou escrever, nada mais é que um recorte da realidade atravessado pelo sonho. A arte de fantasiar é a mesma para produzir milagres ou ciladas, é a mesma que veste as palavras de emoção para serem vendidas em páginas de livros. Às vezes são vendidas em tendas, aos quilos, pesadas em balanças, a preços módicos. Frases sofisticadas ou rústicas que atam como cordas até aos mais avisados. Aprendi cedo que seria difícil lidar com isso. Comecei com certa precaução. Media as palavras palmo a palmo para ver até onde elas poderiam chegar. Minhas mãos engrossaram pelo trabalho de lapidação. Espichava os vocábulos, puxava as tardes pelas beiras, moldava os sons com o fim de criar laços sinestésicos que fossem indissolúveis. Aprendi a diferenciar estruturas, a separar palavras pelo tato, a ousar nas envergaduras, mas nada foi bastante para me proteger, para me poupar dessa engenhosa armadilha inerente à realidade.
          Não sei se existe explicação lógica para justificar os atos sentimentais, mas eu sabia, eu juro que sabia que os arcos daquele sonho iriam ruir. Eu sonhava e falava, e a palavra ia ficando maior do que o sonho. E o sonho ia entrando na palavra, e a palavra ia roubando o sonho... Fiquei cativa da palavra impiedosa e do seu tom racional.
          Eu sempre soube, JB, que o meu amor era maior que o seu, e isso já era uma dor antecipada. A memória do futuro me oprimia. Cada vez que você me abraçava, ofegantemente eu respirava uma certeza, você não era meu. Cada vez que nos amávamos, mesmo com toda sincronia de corpos, a sensação de distância era abissal. Sua cautela para que a sensibilidade não fosse dominada pela inteligência, me atingia como uma faca cega diretamente no coração. Sua paixão por Kant me causava ódio. Kant nunca conheceu o amor. E você queria ser ele. Eu também quis ser ele por várias vezes. Quis ser aquele livro velho de folhas amareladas cujas palavras construíam os seus argumentos. Faria qualquer coisa para garantir a sua admiração enquanto você me impunha um silêncio devastador. Um silêncio severo, teórico. Por certo, queria me enfraquecer para que eu não sofresse tanto a dor da morte. Mas não há paliativos para a morte, nem para os simulacros da morte. O amor já havia engolido tudo.

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