quinta-feira, 23 de setembro de 2010

O CAMINHO SECRETO DAS PALAVRAS


O caminho secreto das palavras

      Uma amiga disse para eu não usar a palavra “desgraça” em meus textos. Falei a ela para não avaliar a palavra com o rigor do uso, que a palavra é arbitrária, que guarda dentro de si o espírito das civilizações e coisa e tal, mas minha amiga não gosta da palavra e ponto. E contra isso não há argumentos. Devo dizer que também não me agrada o significado que “desgraça” atualmente comporta. Agrega uma única unidade de pensamento que sugere uma única idéia, a do infortúnio, da miserabilidade, do fim da dignidade, do irreversível. O prefixo “des” passa des-percebido. Não nos atentamos de que o “des” significa ausência, logo desgraça significa “sem a graça”.
      A palavra “graça”, que é de onde se origina a desgraça, é uma palavra linda, poética e sagrada. Vem do latim gratia, que deriva de gratus (agradecido) e que em sua primeira acepção designa a qualidade ou o conjunto de qualidades que faz agradável a pessoa que a tem. Razão porque algumas pessoas mais idosas costumam perguntar “qual é sua graça?”, significa que o sujeito, segundo a doutrina cristã, recebeu a graça de Deus e, junto com a graça, o nome. Nome na cultura bíblica é o mesmo que identidade íntima, o mais verdadeiro de mim mesmo. Também há outra pergunta enraizada na cultura popular que é: “quando você vai nos dar o ar de sua graça?” que seria o mesmo que dizer “quando poderemos contar com sua presença?”. Presença, neste caso, é igual à graça. Também tem aquela graça que equivale ao carisma: “fulano é uma graça”, ou como diria Hebe Camargo “ela é uma gracinha”. E, além da identidade, presença e carisma, não dá para deixar de fora aquela “graça” que faz rir. A graça engendrada pelos humoristas ou por pessoas chamadas “engraçadas”, um derivado com prefixo e sufixo.
      Graça é também um conceito fortemente arraigado no judaísmo que significa dom gratuito de Deus. Antigamente para os judeus, alguém que não tivesse onde dormir, alguém que se alimentasse ou se vestisse mal era considerado sem bênção, automaticamente, sem a graça de Deus. Ao ver alguém nessa situação, os judeus proferiam: “este é um sem bênção e sem a graça de Deus”. Na medida em que o tempo foi passando, a frase foi se encurtando e sintetizada para “este é um desgraçado”, o que para os judeus significa, ainda, sem a graça de Deus.
      O que percebemos é que a palavra primitiva “graça” tem toda uma carga histórica, ideológica, religiosa, popular entranhada em seu significado. E em todos os segmentos em que se manifesta, apresenta uma conotação positiva, altiva e bela. Porém se acrescida do pequeno prefixo “des” fica murcha, seca, totalmente esvaziada. Perde-se a evolução e a involução do conceito. O “des” suga com uma cânula todo o teor lírico e religioso da palavra. O “des” é um profeta erege que determina outro poder ao vocábulo, esvazia a história, apaga a identidade, suplanta o carisma, atira o tempo pela janela e se derrama desgraçadamente em praça pública. Porque a desgraça está nas ruas, nas praças, nos guetos e parece irreversível, porque depois de ser desgraça a palavra não consegue retroceder. Segue sua sina mortal, embora eu creia na imortalidade da palavra, sei que ela tem corpo e alma, que é dotada de um espírito que rege o universo e move-se sobre a superfície da terra. Que as palavras modulam na compleição do pensamento e na elevação do espírito. E que se regressarmos às forças primordiais da criação do cosmo, somos capazes de retomar essa força da longevidade da palavra: no início era a palavra e etc. Sabia Deus que os homens iam carregar a palavra com significados? Por supuesto. Daí que ganhou um tempo, transformou a palavra em carne e habitou entre nós. E a palavra se fez Deus. Apesar das experiências pessoalíssimas com as palavras, pouco sabemos dos desígnios de Deus. E é nesse ponto que se rompe o nosso cordão umbilical com o misterioso umbigo do mundo. Essa foi a nossa des-graça. Temos que encontrar outros canais para conexão com o criador. Falando em conexão, deixa eu puxar o fio condutor desta crônica que soltei em “sina mortal” – tenho uma facilidade enorme para fugir do assunto – e completar que a sina da palavra desgraça está muito bem delineada junto à margem do ruidoso abismo da criação, foi o preço pela emancipação humana. E que minha amiga me perdoe as palavras, e o pensamento que vai na frente das palavras, na verdade eu só queria dizer dessa pequena poesia que é a humanidade, dos pequenos adágios que resumem idéias, pensamentos e sensações em nada. Que perdoe também minha maneira quase leviana de falar das coisas sagradas, motivo pelo qual não me aventurei pelos campos da Teologia. Tampouco da filologia.

Lucilene Machado

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