quinta-feira, 16 de junho de 2011

FORMIGAMENTOS



FORMIGAMENTOS

Depois que vi  o interior de um formigueiro, passei a ter muito mais respeito pelas formigas. Foi em um zoológico. Estava dentro de uma grande vitrine que permite ao visitante observar a engenharia e a beleza de uma sociedade extremamente organizada e limpa. As tarefas são divididas entre as castas e cada uma cumpre instintivamente o seu papel sem nenhuma espécie de liderança. As formigas soldados, por exemplo, tem a obrigação de cuidar do formigueiro e, inclusive, diferem-se das operárias por terem partes do corpo maiores, principalmente a cabeça e as mandíbulas. As operárias fazem o trabalho pesado como construir o ninho, coletar comida e água, limpar a casa, alimentar as larvas, os poucos machos - pois as fêmeas são maioria – além da rainha. Esta tem um porte físico mais avantajado e uma pré-disposição hormonal para desenvolver um aparelho reprodutor e por isso assume o posto mais elevado. Em uma colônia podem surgir várias formigas com esse biótipo. São as rainhas virgens que durante a primavera voam do ninho, com os machos, para acasalar. É a chamada revoada. Após o coito, o casal perde as asas e retorna ao solo, a fêmea, então, cava um buraco para iniciar a criação de sua própria colônia. Para as espécies sem revoadas, uma das rainhas abandona seu formigueiro, acompanhada de algumas operárias, e funda uma nova colônia.
Saí do zoológico me sentindo estranha. As formigas perturbaram o meu espírito. Mais que isso: diluíram os meus conceitos sobre a vida em uma infusão incolor. Tudo é instinto. O conhecimento das formigas está armazenado em seus cérebros, deixados em quarentena, e no momento certo elas agem sem que ninguém tenha que determinar nada. Pensei no instinto perverso dos humanos e em nossa pobre estética existencial. A vida humana nunca terá essa elegância  porque a nossa natureza é egocêntrica. Pode ser que toda a nossa desgraça esteja no interior desta palavra: egoísmo. Talvez não. Talvez eu seja pessimista por demais e o homem consiga algum dia seguir os ditames de sua própria essência, consiga olhar o mundo como um fenômeno estético, consiga se relacionar, respeitar, cumprir com o seu papel... Aceito isso com tanta indiferença que pareço uma pessoa sem fé. Eu tenho fé, apesar de algumas vezes vê-la  estraçalhada pelo gume da verdade. Foi o que me ocorreu diante do formigueiro. Voltei tão vazia. Comparava cada ato humano com a política das formigas e elas sempre saiam vencedoras. Com exceção ao fato de ter de alimentar o macho, elas estão bem mais próximas da perfeição. Fiquei com medo de desejar ser formiga -­ no fundo eu já estava desejando – fiquei com medo do desejo crescer, tomar forma, invadir a corrente sanguínea a ponto de eu ter de contar ao psicanalista minha obsessão pelos insetos. Certamente, o psicanalista faria um recorrido sobre o assunto, avaliaria minhas carências e talvez propusesse um tratamento de choque... Não.  Fiz um pacto comigo: nunca mais visitar a casa das formigas e nem pensar sobre o assunto.
Ocorre que hoje pela manhã encontrei uma formiga solitária caminhando sobre a pia. Meu instinto humano armou-se das armas letais que se pode encontrar numa cozinha, para matá-la. O legado de higiene que herdei de minha mãe imediatamente sinalizou: perigo a vista! Mas no momento em que meu cérebro estabeleceu relações entre a cena e a minha memória afetiva, encontrei uma explicação simplista favorável à sobrevivência da formiga. Esta, a julgar pela cabeça, devia ser uma rainha solteira que se perdeu do macho. Eles são sempre distraídos. Ou talvez o macho estivesse inerte, sem asas, caído em alguma cova, depois do acasalamento, e ela, como sexo forte, saiu a procurar comida. Provavelmente já estava enxertada de um formigueiro todo, e eu não apenas iria matar uma formiga, mas uma legião delas. Corri na geladeira e peguei sobras de arroz cozidos e espalhei sobre a pia limpa. Não foram muitos, uns dez grãos. Logo a formiga solitária abraçou-se a um deles, o dobro de seu tamanho, e seguiu ofegantemente com o corpo que ora se debruçava para esquerda, ora para direita. Às vezes caía no vazio do granito e voltava outra vez o mecanismo do vaivém interminável, a cadência, o avanço, parecia entregue a uma força que ela mesma provocava e recebia. Havia prazer naquele ato. Disso eu estou segura. Naturalmente tive que atender a outros setores da casa e quando voltei já não havia mais formiga, tampouco arroz. Teria ela convocado as amigas? Teria ela carregado solitariamente todos os grãos? Por minha cabeça passou uma idéia tosca de que a formiga poderia ter vários parceiros esperando comida. Claro, uma formiga pode ter vários amantes. E aí volto à questão do prazer em carregar a comida. Muita comida, muita festa, muitos machos. ( De onde tirei esse raciocínio maluco?)
Por ora, é melhor esquecer esse assunto, creio que estou tendo formigamentos no cérebro. Para minha sorte é quase inverno e todas as espécies de formigas já estão recolhidas em seus lares desfrutando da comida que armazenaram no decorrer das estações. Também fechei minhas portas embora a minha espécie continua desprovida de comida, água e segue sofrendo de solidão. 
                                                                                              Lucilene Machado

Um comentário:

  1. Bom dia, li sua crônica sobre o papagaio em um email e adorei ai copiei o link do teu blog e aqui estou em formigamentos rsrrs de vontade de deixar esse comentário aqui, amei tuas crônicas cantinho que irei voltar sempre
    se puder e quiser visite-em em meus cantinhos, tenho o blog Opine! com alguns dos meus pensares e
    tenho um blog de poesias
    www.rosanesilveiraopine.blogspot.com
    e
    www.rssilveira.blogspot.com
    te aguaardo lá, até breve

    Rosane Silveira

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