quarta-feira, 29 de junho de 2011


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Pequenas ficções de inverno

Abrem-se as primeiras páginas do inverno. Como nos anos anteriores, o início da estação é uma página em branco contornada pelo silêncio da espera. Espera-se que o frio chegue de uma vez, que a chuvinha fina e gelada molhe os portais das casas, que o vinho adoce a nossa boca e que a linguagem do amor adquira, nos corpos, uma estampa mais secreta.
Espera-se também a chegada dos ventos uivantes, vindos lá do sul, carregados de mensagens cifradas, de pequenas confissões, pequenas surpresas... O inverno é uma época propícia ao amor, aos reencontros, ao acasalamento. Tudo parece mais romântico. Lareira, filmes, pipoca, mão nas mãos, sofá, cobertores, abraços... as relações ganham novas sugestões e novos significados. Mas também é uma época propícia às recordações e à saudade. No inverno as coisas se deslocam, mudam de lugar. O que parecia esquecido, enterrado, pode voltar a incomodar, às vezes até a doer. Porque no inverno é muito provável você vir a padecer de um frio por dentro. Uma moléstia que não mata, mas faz doer ossos e articulações. Deixa muita gente desesperada atrás de um medicamento, um paliativo, uma palavra, qualquer coisa para amenizar esse mal que não tem nome, não consta nos prontuários, mas incomoda feito reumatismo.
Quem, porventura, já não teve algum nome tatuado na carne viva da memória? Quem já não arquivou em alguma parte do coração uma história ficcional na qual se sentiu plenamente amado? Temos uma facilidade enorme para inventar memórias, algumas mais fortes que a realidade. Tão fortes que nunca saem de nós. Até o coração anda mais depressa quando essas memórias se aproximam do real, é uma aceleração intensa que chega a assustar. Com o passar dos anos aprendemos que a realidade é apenas uma coincidência defasada entre tempo e espaço, que a ficção, sem cuidado e sem juízo,  já havia se antecipado e criado roteiros muito mais originais.
Ando namorando uma idéia original para ficcionalizar um romance. A narrativa, ao modelo realista-romântico, tem o aval do meu coração pulsante e resistiu já a várias noites de sono. O cenário é a Espanha, o tempo é um futuro próximo (2058, por exemplo) e começará pelo meio. Meio do caminho de Santiago. Ele, um caminhante de visão profunda e espiritual, ela uma fotógrafa que vive das imagens e nem sabe quem foi apóstolo Santiago. Embora pareça ser apenas imaginação, os protagonistas cumprem com os requisitos mínimos das histórias reais. Será em um contexto onde as pessoas rejeitarão tudo o que for insólito, original e não-programado. A vida será totalmente pré-estabelecida. A moça, por exemplo, é fruto de uma barriga de aluguel e teve todas as características traçadas antes do nascimento. Da cor dos olhos à escolha da profissão, tudo previamente antecipado, confirmando que os encontros não previstos, nesse futuro, terão raras chances de se concretizarem. No entanto, a história que estou inventando terá final feliz, os dois se encontrarão na catedral de Compostela e de lá sairão com o intuito de dar um basta ao destino pré-traçado e começar uma nova história criada por eles.
No fundo, eu sei que a idéia não é assim tão original, e já deve ter sido explorada em muitos romances, mas o difícil é explicar isso ao meu coração que já anda a galope traçando várias possibilidades de caminhos. Interromper seu percurso poderia provocar um acidente vascular.  A solução, por hora, é o equilíbrio dessa linha que relativiza real e ficcional, até que chegue a primavera e eu possa então voltar a viver a coincidência tardia da realidade.

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