segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Ser professor




Ser Professor

            Professor, palavra bela arranhada por uma imperfeição: a impossibilidade de não tornar o outro, sábio. Sabedoria não se transmite, já dizia Proust. É preciso que cada um a descubra depois de uma longa caminhada. Sabedoria é uma maneira de ver as coisas. Essa é a grande frustração com a qual se depara o mestre. É um subterfúgio que povoa o que deveria ser um substantivo concreto. Ou seria um verbo? Refletindo melhor, a palavra professor deveria ser verbo. Verbo professorar conjugado num eterno gerúndio. E ainda ousaria contribuir para um significado mais justo. Professorar - verbo transitivo direto que quer dizer ensinar e aprender; antítese. Porque o professor tem de conviver com esses dois mundos paradoxais e engendrá-los perfeitamente de forma a não se sentir "concluído" em nenhum deles.
            Ser professor é ter algo sempre por melhorar. Por maior que seja seu contorno dentro do quadro negro, por mais narcísica que seja sua postura diante de novos métodos e paradigmas, ele sabe, bem lá no íntimo, que precisa tentar, arriscar, inovar porque dele depende a evolução do outro. Ser professor é ser parte da vitória ou da derrota do seu discípulo. Um ofício que envolve compromisso, coração e razão. Liberdade e responsabilidade. Uma equação que geometriza um sentimento. Uma poesia que carboniza o giz. O vento apaga as letras, mas os catadores de esperança levam-nas no peito. O resultado só virá amanhã, quando ambos se encontrarem nos consultórios, nos parlamentos, nas repartições públicas e depararem-se com uma frase antiga no ar: "É o meu professor". E o professor se assusta com o pronome oblíquo ou com o objeto indireto meio fora de lugar. Mas reconhece alguns gestos e palavras que foram suas. De repente, o anjo sonolento da vaidade é despertado e o professor sonha o sonho ambíguo da inclusão social, da consciência política, da erradicação do analfabetismo e vê a pátria amada como um país pensante que jamais se deixará dominar. Audácia?
            Todavia, continua tapeando as roupas com as mãos, na tentativa de espanar o pó de giz. Sem quebrar o hábito, recolhe seus instrumentos de trabalho que, ás vezes, não passa de um apagador. Arrepende-se do verbo utilizado para falar de. Pune-se pela falta de qualidade no discurso. A tentação intelectual, o conflito, o conformismo, a resignação, inteligência para compreender a não-inteligência. Quantas falsas verdades! Há um vazio sinistro em tudo. Que a sociedade entenda. Que seu coração entenda. Sempre essa obrigação de comprometer-se com as ideias do outro. Até para pensar sua vida particular, não consegue livrar-se do vício de uma terminologia adequada. É possível que nunca se liberte dos métodos comuns à educação. É possível que morra com a escola encravada nos pulmões. Mas o tempo vai respirar seus feitos por eternidades. Amém.

Lucilene Machado

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

De tintas e cores





De tintas e cores

Estou pintando a casa e isso não é ficção. Pintei as paredes principais de um branco fosco para lembrar que a vida necessita ser recriada todos os dias mesmo com a ausência das cores. Pintei uma parede, pequenina, de vermelho. Um atrevimento, eu que sou tão contida... Talvez para lembrar que a paixão é sempre o ponto de partida para qualquer recomeço.
Enquanto os pincéis sobem, descem, atravessam corredores vazios, vou me medindo nas paredes frias. Se eu fosse artista plástica ia me pintar em cores, feito Frida Kalo. Mas sou apenas uma mulher que observa os pincéis  rasparem as costas nas paredes  e apagar aquilo que o pano molhado não conseguiu.  Há manchas que precisam ser encobertas, esmaltadas sob várias camadas, como os sentimentos  que esmagamos nas paredes do espaço-tempo.  
O pintor vê as marcas, enquanto penso coisas pelos ângulos adjacentes do nada. Talvez eu escreva, aproveite a pintura para refletir a vida. Ainda não sei como, a vida é porosa em sua acomodação, dá muitas voltas, e o branco não suporta tanto desamparo. A vida precisa de azuis, de amarelos, de rosas, de cores encarnadas, disformes, desbotadas... Precisa de tardes verdes estiradas sobre o dorso do horizonte, suando suas tinturas sobre o mar de sargaços.
Aqui em casa só preciso desse branco  líquido e do vermelho despencando na sala sobre o vazio de Deus. Todos os vazios são de Deus. Deus mora nesse vazio seco que reside em mim. Às vezes, como hoje, água nenhuma amortece. Fabrico sombras externas para disfarçar o deserto de dentro. O que me refrigera é a arte. A arte é esse luxo que está perdendo o glamour. Tudo que eu quero mostrar com ela é silencioso. Não sofro o bombardeio das horas em trânsito. Só estremeço diante da palavra anunciada. A palavra me penetra, me corrói. Não sei me defender dela, nem sequer da minha. Daí o meu refúgio nos textos brancos, nas entrelinhas, no que está detrás do que está atrás do pensamento. O que só pode ser Deus. Hoje eu queria Deus delicadamente para mim. Pretensão? Deus ama os pecadores. Até se pronunciou a um pecador apaixonado feito eu: “hoje me convém pousar em sua casa”. Daí as paredes brancas, daí a carne branda da escrita, porque Deus sempre se compadeceu das minorias.
O cheiro da tinta envenenou-me de poesia. Minhas pálpebras lilases fecham noites cheias de estrelas castanhas. Imagino-me na paisagem volátil. Eu com meu coração do tamanho do mundo, ora sendo si mesmo, ora se desconhecendo. Meu coração é menos puro que essas paredes brancas. Meu coração é febril, inquieto, segredos percorrem a aorta dilatada... e se a saudade me alcança  quase morro nesse sofá gris.
O amor fracassado é a coisa mais horrível do mundo. Não sei o que é que faz fechar suas portas, tampouco sei o que o faz irromper. Mas sua natureza atrevida afunda os incautos na esperança lamacenta de seus desígnios. O amor sempre me pareceu um cansaço que não me permite tirar os sapatos. O amor me colocou no ventre da baleia, me vomitou num deserto e ainda acaba me pregando na cruz. Mas não desisto, embora não saiba nunca o que fazer com ele. É muito mais fácil lidar com os espaços vazios, pintar as paredes de branco e exercitar a arte abstrata de arrancar cores do sol em dias parados e lentos, como hoje.
                                               Lucilene Machado

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Limpando a alma



Limpando a alma

Seu Jorginho limpa o quintal, corta os galhos secos, apara a grama, arranca as ervas daninhas, rastela e assovia uma canção antiga. No meio das folhas molhadas, do vento fino, do cheiro da erva, das coisas puras, a vida acontece em sua totalidade. Do outro lado da parede estou eu, limpando meu computador, desfazendo-me de textos que foram guardados para ler um dia, de mensagens prontas enviadas coletivamente, imagens de cidades que gostaria de conhecer, fotos de pessoas desaparecidas, animais perdidos, entre outras coisas que teimam em permanecer nos compartimentos do meu PC. Com um pouco mais de cuidado, vou apagando mensagens que já deveriam ter sido excluídas, mas estão carregadas de sentimentos. Emails com dores anexadas, com silêncios grudados na página principal e esparsas palavras que rangeram ao toque do teclado. A vida acontece dentro dos meus vazios.
Seu Jorginho me chama para saber se quero enterrar as folhas deixadas pelo outono.  Pergunto se as folhas não têm de ficar na superfície para proteger as raízes no inverno. Ele diz que eu sempre respondo com outra pergunta e muda o tom, diz que vai cortar os galhos do coqueiro. Percebo que ele rechaça o exercício de soletrar a vida. O pensamento escurece.  Ele deve ter lá seu HD entupido de sentimentos antigos, coisas fossilizadas que não há como explicar. Seu Jorge nunca atravessou os portais da Internet, nunca usou a palavra para tocar a mão de outra pessoa, nem deixou a hiper-realidade ocupar espaço em sua vida. Do reino da cibernética, da luta entre o simulacro e a realidade, ele saiu vencedor.
Volto para o computador sentindo-me a parte vencida. Seu Jorge não acredita em nada virtual, o que julgo normal. A literatura sempre se utilizou de personagens céticos, recalcitrantes, espantados, prontos para se maravilhar. Do tipo que enfia as mãos nos bolsos e imita um homem tranquilo sobre a superfície do  mundo. Mas isso não é ficção, é a vida balançando nas folhas das árvores.
Reorganizo as pastas que criei ao longo da minha vida cibernética. Pastas com titulações do tipo “família”, “amigos”, “amigos de verdade”, “viagens que fiz” “livros em espera”, “textos para escrever”, “coisas para esquecer”, “sem soluções” e outras que estão voltadas para o burocrático e não vale a pena botar os nomes aqui. Durante o dia, várias vezes cruzo a fronteira do real para o virtual e alimento essas pastas com fotos, desenhos e principalmente, palavras. Às vezes celebrações ingênuas, outras vezes rechaços, amores diluídos em comunidades sociais, solidão estranha que me acariciou a face numa noite de sábado... palavras para sentir o que não aconteceu, palavras tomadas de surpresa, nuas, ditas às duas da tarde. Pensamentos amarelos que guardam alguma essência sem definição e uma indagação filosófica: “será que nos amamos?” Por supuesto, no princípio reina a palavra.
Nas pastas, como nas plantas, opto por manter minhas raízes protegidas, e mantenho impressões quase sem nexo que narram, indiferentemente, a minha autobiografia sem fatos reais, a minha história sem vida, confissões que fiz sem vivê-las, mas onde estive, inteira, esperando o tempo passar.

domingo, 12 de agosto de 2012

Coisas de Mulher


Ela queria ser amada. Coisas de mulher romântica. Nasce, cresce, envelhece mas, continua uma menina. Sofreu as decepções mais elementares, dessas que incluem abandono, traição, machismo, injustiça, violência e outras minúcias que deveriam ser abolidas da pauta dos relacionamentos. Ainda assim , sobreviveu. As mulheres sempre sobrevivem. São feitas de uma matéria frágil cuja embalagem deveria conter uma advertência: Manipule com cuidado! Porém se a parte interessada se nega a compreender a implícita recomendação do rótulo, ou talvez até seja mesmo inteiramente analfabeta, contribuindo assim para a concretização de trágicos episódios, não suplanta a garra da mulher. Ela reúne os cacos, as partículas, sacode a poeira, dá a volta por cima e... jura (as mulheres sempre juram) que nunca mais se deixará envolver. E na primeira oportunidade, lá está ela caindo no mesmo buraco. 
Coisas de mulher carente! 
 A mulher para quem abro aqui esse parênteses foi constituída também desse intrigante barro. Acreditou em príncipes, em alma gêmea, na outra metade da laranja... alimentou a ilusão de encontrar alguém que a considerasse importante, que compreendesse seus sentimentos; alguém amável, terno, com senso de humor;alguém que a confortasse quando estivesse deprimida, sem advertências ou censuras; alguém digno de confiança que ocasionalmente lhe escrevesse uma carta – um bilhete que fosse – declarando seu amor; alguém que lhe surpreendesse com flores, cartões e confessasse seus sentimentos, pensamentos, fraquezas, frustrações... Durante muito tempo esperou alguém que de vez em quando preparasse o jantar enquanto ela ousasse tomar um banho demorado; que mostrasse simpatia quando ela tivesse alguma indisposição; alguém que segurasse sua mão em público e lhe abraçasse na frente dos amigos.
Coisas de mulher sonhadora! 
Entretanto, descobriu tardiamente(antes tarde do que nunca!) que o homembideal não existia. Se existisse com certeza não seria ela a merecedora de tão preciosa dádiva. Desistiu do intento. Fez pacto. Promessa. Porta trancada. Que dor que dava! Quanta vontade de conhecer o infinito, de colocar estrelas no prato, nacama; de engolir a lua, refletir os sois de outros planetas e correr livremente pelo espaço sideral. 
Coisas de mulher nostálgica! 
Recolheu-se numa casa de caracol. Resistiu as perspectivas tentadoras, matou todas as possibilidades. De vez em quando deparava-se com pensamentos furtivos e escrevia nomes na vidraça... porém logo se redimia, restaurava a casa, reparava as frestas, as fendas, rasgava as idéias e lutava contra as leis da física (ou físicas?) que estão sempre presentes na relatividade dos imprevistos.
Coisas de mulher prevenida!
Entretanto esqueceu de apagar as pistas. Deixou marcas e pegadas na areia. Deixou o cheiro das fêmeas no ar, detalhes que não foram pressupostos. O "inimigo" que veio pelo instinto, conhecia de estratégias, de ciências exatas, de campo magnético, de pólos... positivos e negativos, sabia convergir e divergir .
Seu intento? Atrair e atrair. Só não percebeu que estava andando sobre um campo minado. Faltou-lhe intuição (penso que intuição também é coisa de mulher), o que faltou mesmo foi cuidado.
Quando os jornais publicaram a foto dela como a principal suspeita do crime, ninguém quis acreditar. Nem eu!
Coisas de mulher imprevisível!

domingo, 15 de julho de 2012

segunda-feira, 2 de julho de 2012

segunda-feira, 11 de junho de 2012

As delícias e as torturas do amor


 
As delícias e as torturas do amor

Li no livro Ensaios de amor, de Alain de Boton, que se perguntássemos à maioria das pessoas se elas acreditam ou não no amor, elas provavelmente diriam que não. Mas essa não é uma resposta necessariamente verdadeira. É só uma forma como elas se defendem contra o que querem de fato. Elas acreditam nisso e fingem que não, na medida em que isso é possível. Se pudessem, jogariam fora todo esse cinismo, mas  a maioria também nunca terá chance de se desfazer dele.
A questão é que quando se trata de amor, o dito não é exatamente o que se quer dizer. O amor é cheio de sinais ambíguos, de meias palavras, de silêncios. Para quem está de fora, o amor chega a ser ridículo. Não foi à toa que Fernando Pessoa disse que todas as cartas de amor são ridículas. Eu entendo o processo. Os pensamentos dos apaixonados estão desconjuntados, falta articulação, falta vocabulário, a linguagem vai tropeçando nos sentimentos, na mente ansiosa, de modo que a frase perfeita fica para os poetas que vão compô-la dentro da lógica estrutural, capturando a polivalência da natureza humana.
Em contrapartida, só os apaixonados conseguem extrair do beijo a doçura que ele oferece. O leve roçar dos lábios, as tentativas suaves que guardam o sabor único da pele antes dos lábios se abrirem e tornarem a se juntar em bocas já sem fôlego, articulando desejos que vão se enroscando no corpo em dimensões desproporcionais à lógica, ao conhecimento e a qualquer teoria que se estudou.
Quando se está enamorado, o suspiro potencializado inutiliza o pensamento. Há uma insanidade qualquer derramada sobre o ato do amor. Não há julgamentos, tudo parece perfeito sob esse prisma. Até o feio parece belo. A estética amorosa é redefinida de forma original: uma deformidade, por exemplo, pode ser vista como um charme. A beleza pela ótica dos apaixonados flerta perigosamente com a loucura, não se ajusta às regras da proporção, tampouco aos conceitos do clássico. Não é raro encontrarmos casais completamente díspares e não raro também nos perguntarmos “o que ela viu nele?” ou vice versa. O amor encobre uma multidão de defeitos.
Talvez, seja verdade que não estamos completamente vivos enquanto não formos amados; que não existimos antes de ter alguém para nos ver existindo; não conseguimos ter uma ideia adequada sobre nós mesmos se não houver outros em nosso entorno para nos mostrar o que somos. Para a filosofia, nossas identidades são fluídas e para sentirmos inteiros necessitamos de pessoas que nos conheçam como nós mesmos. Ou seja, com o amor existe uma constante e intensa confirmação do eu, sem dizer que é reconfortante encontrar refúgio para nossa invisibilidade nos braços de alguém que tem nossa identidade na ponta da língua.
Mas, o feroz agravante do amor é que não há garantias de continuidade. As juras feitas diante do pastor, do padre, do juiz... diante dos amigos, da família ou entre quatro paredes nas noites de luxúria não asseguram nada. Podem assegurar um casamento, mas o amor, como disse Drummond, foge a regulamentos. Ficamos todos expostos a um tipo de dor para a qual não se encontrará paliativos. Lori, personagem de Clarice Lispector, em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, vive a purgação do amor. Ela ama pela primeira vez e precisa passar pelo processo da aprendizagem. O ser apaixonado se mostra, em sua precariedade, marcado pelos vazios, pela angústia e pela submissão ao outro que lhe parece maior e mais especial. Lori tenta fugir da angústia, mas cai na impossibilidade de sentir algo diferente. Sem dor, o amor será impossível. Assim, ela destemidamente avança na descoberta do que se chama “viver”. Com dificuldades, o processo vai se construindo entre idas e vindas, lapsos, rupturas, medo de avançar depressa demais, ou regredir e perder os passos já avançados, inquietando-se diante da inviabilidade de se explicar ou entender as incertezas.
Lori revela as delícias e as desgraças de amar. Outras personagens da literatura, das telenovelas também incorreram a esse risco de ver a vida detalhada num tango argentino. Aí é deixar sangrar: Déjame que llore/ como aquel que sufre en vida/ la tortura de llorar su propia muerte...
                                                                                                              Lucilene Machado 

terça-feira, 29 de maio de 2012

Do amor e suas simbologias

Jacques-Louis David “Marte desarmado por Venus e as três graças”

Do amor e suas simbologias


A esperança é um dos fortes fios usados para tecer a poesia. Toda poesia é grávida de esperança. O amor nem sempre. A poesia nunca esgota o sonho, o amor sim, esgota todos os canais. O amor mastiga e digere todas as ilusões, quebra as nossas asas. A esperança é limpa, o amor não, ele tem um caminho indecoroso, encorpado de restos, de pedaços de palavras, fotografias rasgadas, folhas amarelas, migalhas que foram oferecidas em finais de noites, haicais que seriam epopeias, rimas quebradas, estrofes desprendidas do fim e do início, sem contar os gritos soltos, as lágrimas salgadas, os cheiros que impregnam todos os labirintos.
O amor é um círculo que nos enlaça e vai, aos poucos, nos engolindo, feito cobra sucuri. Aliás, o amor incorporou as  características da serpente ainda na gêneses da vida. Uma serpente enroscada em seu tronco, deslizando pela veia do tempo e do espaço, uma serpente vestida em suas peles coloridas na região mais selvagem do Eden, enquanto um amor branquíssimo dormia dobrado sobre o ventre de um casal em fase de encantamento.
A poesia foi testemunha de tudo. A serpente seduziu a mulher, por consequência seduziu o homem, incorporando-se nessa corrente de sedução. A insondável serpente, na contramão da vida, agregou ao amor esse jogo de verdade-mentira, de ser-não-ser, quer-não-quer, vem-não-vem... e o amor ficou cheio de reticências. Um ponto final pode não ser o fim. Um ponto final pode se esticar todo e voltar a se enroscar na frase. Depois, outras frases seguindo a ideia primitiva, até os envolvidos serem obrigados a aprender a desamar. 
Eu já tive de aprender a desamar. Uma das experiências mais tristes da vida. As palavras, que não podemos dizer, nos seguem. Os sentimentos, que não podemos alimentar, nos seguem. A angústia nos segue e até a esperança vem trotando a passos lentos, espancando as patas no chão, tentando nos alcançar para convencer-nos do dom da ressurreição. O que é um perigo. Se ouvirmos a esperança, por um segundo que seja, a recaída é certa. Ressurreição não existe, amor morto é amor enterrado – repetimos, com o fim de ouvirmos nossa voz e acreditarmos nela. Nas entranhas uma estranha dor. Constante e cortante. Alguns buscam um vício, uma brisa, uma rima, um psicanalista capaz de compreender as confusas palavras que tentam se equilibrar em frases superlativas.
Depois vem outra etapa, um tempo comprido e horrível. As palavras vão perdendo os significados. Até as mais óbvias. O vazio vai invadindo nosso espaço e ficamos a poucos passos de uma eternidade de silêncio.  O amor passa a assustar mais que todos os fantasmas que habitam o coração humano. Há um pavor em amar num lugar tão frágil como o mundo, um lugar imperfeito, onde o amor está sujeito a emudecer, mentir e a aceitar as sugestões travessas de serpentes que seguem a instigar mulheres e homens pela vida afora.
Solitários, seguimos com nossas sensibilidades desgovernadas. Transformamo-nos em seres humanos produtos e nossas escolhas partem das nossas mais básicas conveniências. Mas, não conseguimos muito bem separar efêmero de permanente, material de espiritual e muito menos a administrar nossas frustrações. A poesia volta a nos rondar: um corpo quer outro corpo. Uma alma quer outra alma e seu corpo. Os sinais ambíguos começam a aparecer, forte carga de ilusão romântica e imprecisão semântica. A mesma história voltará a se repetir? Talvez sim, talvez não... a propósito, passei a tarde olhando o quadro de Jacques-Louis David “Marte desarmado por Venus e as três graças”, alguma coincidência? 
                                                                                                                      Lucilene Machado