quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Trouxeste a chave?



TROUXESTE A CHAVE?

            Encontramos um Drummond na parede úmida da casa. A princípio pensamos ser um homem qualquer, desses que aparecem pichados nas paredes dos prédios, mas quando minha amiga contornou a cabeça calva com óculos de grau, a espinha cuidadosamente empinada e as pernas finas do Carlos gauche, a interpretação foi unânime: é o poeta. Veio do lugar das coisas acontecidas e deve ter descido pela escada de algum verso retumbante, até ficou com cara alegre.
            Meu primeiro desejo foi perguntar: trouxeste a chave? Mas me pareceu atrevimento. Então falei: - Salve Carlos, sou a que te ressuscitou na parede da memória.
 Ele respondeu com um silêncio solene. Mas eu vi em seu rosto côncavo que ele queria falar, estava refletido no ar de sua escutação. Desconfiei que quisesse dizer: “penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos”. Fui logo me defendendo: - o reino das palavras que te apresentaram está gasto, não sei se isso o decepciona, mas o eterno não vale mais. As árvores já não nascem, precisam ser plantadas. As mulheres têm parto sem dor, já não se ouve o grito da natureza cruzando o corredor escuro para encontrar a luz, tudo é rápido e efêmero. Nada nasce lentamente, como você descreveu, nem o amor. O amor ganhou novos contornos e a poesia teve que se armar, até os dentes, para defender os seus princípios líricos amorosos.
            Mas, perdemos, Carlos, perdemos. Você e eu. O amor é um pênis gigante dentro da boca. Já não cabem as palavras. Só o gosto ácido da saliva e a dor seca da mandíbula a modular narrativas. O amor já não é semeado no vento e, como você profetizou, chegou o tempo em que perderíamos os afetos. Não adianta morrer. Chegou o tempo em que viver é uma ordem. A vida apenas, sem mistificação, sem poesia. Confesso - só para você - que sinto pudor em existir, me vejo deslocada no tempo, sentindo falta de coisas que já não existem, guardando palavras detrás dos dentes, porque falar não importa. Importa fazer. Meu cansaço é o cansaço deste tempo frívolo, das palavras vazias escorregando pela língua. Pagam-se preço alto pela estética e já não se perguntam no bonde “meu Deus, para que tantas pernas?” Perdemos o gosto real das coisas. O mundo ficou calhorda. Todos buscando algo que não sabem. Montando máquinas enfurecidas. Fazendo orações em benefício das desgraças, explodindo e implodindo corpos como se fosse um grande orgasmo.
            Morremos em todas as batalhas, poeta. Vários colegas se calaram. Ficaram mudos dentro de si. Profissionais analistas da alma tentam resolver a questão, mas quê!
É o tempo nervoso da procura. A frustração parece estar implantada dentro de todos com suas raízes secas, apregoando que devemos nos acostumar com a solidão. O homem se tornou um bicho acuado, de gestos pequenos, palavras medidas. Já não temos confissões. Por outro lado, o silêncio nos rói, nos mata lentamente, sem pactos e sem molduras. Um silêncio desumano que vai fatiando a veracidade das coisas, por mais racionais que sejam. Ficamos desprovidos  de fé e esperança. A verdade é um fio de cabelo atando fragilmente as palavras. Não se pode acreditar nela.
            A última verdade que constatei foi sua presença no corredor do banheiro. E é estranho que estejas feliz, nessa sina de fantasma, a me ouvir com uma paciência feminina. Continuas o Drummond de sempre. Nem vou descrever meu estado de espírito, há momentos em que as coisas são intensamente o que são que dispensam qualificativos. Só digo que ri alto, tanto que os vizinhos querem saber. Estou pensando em cobrir de tinta o seu corpo. Uma forma de proteger nossos diálogos, mas saberei que você está ali. Guardarei na retina cada traço do seu contorno, cada razão e cada loucura. O mundo é outro, mas é o mesmo. O tempo continua transformando o saber em devaneio e criando sulcos nessa geografia árida que agora desdiz o nosso reino de palavras. Seja sempre bem vindo, Carlos.

                                                                                         Lucilene Machado 

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Quem está preocupado com a educação?




Quem está preocupado com a educação?

            Estamos em um ponto em que não temos nenhuma ideia do futuro. Presume-se que o futuro se faça com educação, mas quem está interessado? Se você diz em determinado contexto que trabalha com a educação, as pessoas mudam de fisionomia. Na sequência virão afirmações e perguntas para as quais não bastam uma simples resposta, se faz necessária uma defesa com argumentos amarrados à área das humanidades, enfatizando a antropologia, sociologia, pedagogia e até a vocação mesmo, ainda assim  o sujeito emissor vai te olhar com cara de pena. Já ouvi até alguém dizer: “tão inteligente, foi ser professora”.
            A educação, como trabalho, segundo os ditames da sociedade é para os menos favorecidos. Menos favorecidos intelectualmente, menos favorecidos culturalmente, financeiramente etc., porque para a sociedade o que importa é o dinheiro, a fama, a aparência, a capacidade de sedução, de convencimento, ainda que isso gere grandes corruptores. Reina o chavão “o mundo é dos espertos” e, se você é professor, por certo não é “esperto”.  Em um país onde a não-educação é regra, o que interessa é o barulho, o pensamento clichê, frases prontas, repetições. A maioria dos jovens que saem do Ensino Médio não sabe pensar, não sabe estruturar uma ideia, não sabe conceituar um termo, ou seja, repetem o que dita a mídia, e são facilmente manipulados por um sistema que vende falsas esperanças e desenvolvem manobras capazes de manter um povo ignorante.
            Hoje digo a meus alunos que a educação nos interessa porque é ela que vai nos levar ao futuro que não podemos entender. Um futuro escuro. Não temos ideia de como será o mundo em cinco anos, embora se espere que eduquemos para isso. A incerteza é avassaladora e nisso estamos todos de acordo. Mas a maioria não tem consciência do que é. Estamos caminhando para um abismo e a melhor defesa contra o abismo é a consciência da possibilidade de abismo e não nos instalarmos no narcisismo de nossa invulnerabilidade. Nada nos faz tão infinitamente frágeis ou tão infinitamente covardes do que a inconsciência que temos diante dos fatos. Esquecer as precariedades é esquecer a extraordinária potência que temos, ou que não sabemos que temos.
            Hoje ouvi duras críticas às universidades, que estas não sabem e não estão preparadas para formar professores. Há certa verdade nisso, mas não é apenas nossa essa responsabilidade. As famílias também não sabem formar os filhos e grande parte dos filhos sequer sabem qual o papel da família. Talvez a primeira lacuna na aprendizagem se dê aí. Os pais imputam à escola um papel que não é dela, o qual ela não está obrigada a realizar. Sabe-se disso, mas como cobrar? a raiz está em outra precariedade que fragiliza e tira a dignidade de nossas famílias, a política. Há uma citação clichê que circula em infindáveis discursos de que toda nação tem o governo que merece. É o povo que institui o sistema político, logo, por silogismo, o povo não sabe votar. Não sabe mesmo, mas a culpa também não é só dele. Ninguém ensina ninguém a votar, ensina-se a pensar, a refletir, levantar hipóteses, constatar... Ensina-se a história, a ideologia, como funciona um sistema de ideias e o voto será o resultado dessa aprendizagem. Mas quem faz questão que o eleitor pense? Adentra-se a um ciclo vicioso que vai nos extraindo as esperanças a fórceps.
            Passamos vários anos de nossas vidas em um intenso programa de formação. Grande parte de nós já tivemos a possibilidade de estudar no exterior, trocar experiências, avançar nas pesquisas locais, reformular o pensamento, trabalhar com ética, responsabilidade, solidariedade e avaliar criticamente as ações vividas, sem perder de vista o olhar do conjunto e do local onde trabalhamos, pois é isso que nos trará a responsabilidade profissional em nossas tarefas. Mas temos um grande problema: obedecemos a um sistema.
            Quando um novo professor chega à escola se vê obrigado a adaptar-se ao sistema educacional político vigente, que sempre é o mesmo no sentido de deficiências  e nunca é o mesmo no sentido de continuidade. Aliás, não temos um sistema educacional independente das descontinuidades políticas. O projeto educacional brasileiro precisaria ter continuidade. Temos programas excelentes que quando começam a dar resultados são abolidos. Projetos que aproximam a universidade da escola, que estudam o contexto do entorno, que trabalham a construção do conhecimento interdisciplinar com o fim de formar um sujeito pensante... Mas são barrados por falta de verbas. São barrados por falta de vontade política, ou porque uma educação eficiente poderia dificultar as manobras políticas que imperam na sociedade.
            Ser professor no Brasil é viver a experiência quixotesca de dar murro em ponta de facas e o professor está esgotado. Políticos e empresários, sem o menor escrúpulo, ditam seus critérios de eficácia, o que na verdade são critérios de rentabilidade, dentro de um modelo de objetificação do conhecimento. Se por um lado o governo não cumpre com sua parte, por outro, a sociedade não executa o seu papel  fiscalizador. Alguns por comodismo e outros por falta de compreensão. Sem a compreensão dos fatos tem-se a incivilidade. Pela falta de compreensão dá-se a barbárie e a educação vai ficando esvaziada de educação. As pessoas não contam mais com a luz natural dos seus olhos, vê com o olhar do outro, com o olhar tecnicista da objetificação. Compra ideias prontas, tecnologicamente desenvolvidas. O pensamento está em decadência, o humanismo está em regressão e a sociedade está à beira do abismo, mas quem está preocupado com o futuro?
Lucilene Machado
Doutora em Literatura e Teoria literár